Beleza Fatal, Carnaval, filme bissexual e outros assuntos sem rima

pautas que já estão bem velhas, mas eu consegui inaugurar a newsletter só agora! meu tempo é mais importante que o tempo da internet. publicação originalmente da minha newsletter, link no fim do texto :) 

BELEZA FATAL É UMA (ÓTIMA) CARICATURA DO PRÓPRIO GÊNERO

Decidi que vou escrever um artigo sobre essa novela. Aqui, então, jogo alguns pensamentos iniciais somente para começar a digerir as ideias e fazer a pesquisa depois. Beleza Fatal é uma novela do streaming (MAX), com quarenta capítulos fechadinhos que foram liberados, de cinco em cinco, a cada semana. Podemos pensar que os capítulos foram feitos para se assistir a um por dia, seguindo o ritual da novela nossa de cada noite. Mas podíamos ver tudo de uma vez, se assim quiséssemos. Podíamos maratonar a novela que nem série, exceto pelo seu último capítulo, que seguiu a tradição e juntou todo mundo no mesmo dia e horário para acompanhar o desfecho. Beleza Fatal foi estruturada nas características da telenovela, mas não em sua característica mais importante, a meu ver, que é ser uma obra aberta que sofre interferência do público enquanto está no ar (talvez o último capítulo teria sido diferente se esse aspecto fosse mantido. Eu me frustrei e sei que muitos de vocês também).

Com esses primeiros comentários, podemos dizer que Beleza Fatal mescla elementos de novela e série, mas quero focar aqui nos seus aspectos de novela, que vieram com tudo, com força e recuperação de desejos novelísticos que estavam reprimidos. Sei lá, acho que a Globo entrou numa de fazer novelas clean demais, minimalistas, elegantes demais. Eu sou a maior defensora de novelas e de suas qualidades que você vai conhecer. E eu confio fortemente que é possível equilibrar a seriedade que certos temas pedem e a fubanguice fundamental de uma telenovela. Novela é brega. Novela é baranga. Novela é caricatura. Ou pelo menos já foi e talvez a questão seja que a gente estivesse sentindo falta disso quando ligava a tevê para ver Mania de Você. O Chay Suede entregou bem essa cafonice, com seu personagem Mavi. Mas Beleza Fatal entregou isso em absolutamente todos os personagens. Beleza Fatal entregou cafonice nas personagens, no roteiro, nos cenários, nas atuações, nos figurinos, no texto. Beleza Fatal é uma homenagem às novelas. E essa homenagem se estrutura formalmente em uma caricatura do próprio gênero. A família “boa” da história tem o sobrenome Paixão, é de “paixão” que o casal dessa família se chama, e eles agem, claro, pelo coração. A família vilanesca se chama Argento (prata, em italiano), muitos são coração gelado e eles se movem, claro, pelo dinheiro. A hipocrisia das moralidades está posta, como Nelson Rodrigues bem ensinou. Esse inclusive é meu aspecto favorito da novela, eu sou uma grande fã da revelação lenta e bem preparada das hipocrisias morais da família tradicional e dos homens de bem. Todo mundo esconde um segredo, quase ninguém presta. E todo mundo se pega. Toodo mundo se pega. Bissexualidade é pressuposto, graças às deusas (e ao nosso trabalho de exigência por representações mais numerosas e complexas). Beleza Fatal é uma história em que todo mundo está tentando conseguir o que é seu. É uma narrativa de vingança e uma história de desejo. E todo mundo ali é nitidamente personagem. As referências a novelas icônicas também estão escancaradas, como a lembrança do esquema Nina e Carminha de gato e rato ou a própria Lola referenciando personagens da sua intérprete Camila Pitanga. O deboche com o próprio tempo também está ali, a cultura influencer é pilar da trama, é o escárnio central.

Tentando dizer de forma resumida, a complexidade de Beleza Fatal é ser uma novela híbrida que consegue ser contemporânea e resgatar a forma da novela tradicional, ao mesmo tempo. Parece uma configuração impossível, mas funcionou. É óbvio que não sou só elogios, tenho as minhas críticas. O roteiro, por exemplo, tem vários furos. Algumas coisas são profundamente previsíveis. Mas digo de um lugar de quem estuda ficção e a gente, modéstia à parte, pega tudo de antemão mesmo. Só que a gente também tem que saber reconhecer do que se trata. Novela pode ser todinha esburacada, novela é um negócio que pode praticamente tudo. E, apesar das poucas críticas, preciso escrever que o prazer de ver Beleza Fatal permanece intacto. Tudo é nitidamente, assumidamente, divertidamente ficção. E nada importa mais que isso. O pacto ficcional é posto logo de início e a gente voa junto, como nos exigia Glória Perez. A gente entra na Lolaland e daquele dia em diante a Lolaland é o mundo. Beleza Fatal é ficção cafona, é ficção que mostra suas molduras teatrais, exageradas e deselegantes. É a ficção do meu tipo favorito desde criancinha. A gente, aqui no Brasil, chega em casa e se junta pra ver as nossas próprias cafonices na tela. Sempre fizemos assim. Sinceramente, minha intelectualidade eu deixo para o restante do dia. A gente é maximalista nesse país, sabe. Ainda bem que tivemos Beleza Fatal e que estamos presenciando o remake de Vale Tudo, que aparentemente vai manter a sua cafonice original aqui nos nossos tempos. Graças à Nossa Senhora da Teledramaturgia. E bora ali fazer o meu artigo, para tentar colocar em termos acadêmicos esse grande e incrível fenômeno brega. A gente se forjou culturalmente na teledramaturgia baranga. A gente merece o delicioso prazer do cafona.


CORPO, DESEJO, CARNAVAL

Eu moro sozinha e você pode ler essa palavra como o adjetivo mais delicioso que tem no meu dicionário. Aqui essa palavra tem zero significado de pena. Hoje, depois de muita luta, a palavra “sozinha” significa ouvir músicas barangas e maravilhosas estilo Antena 1 enquanto se lê um livro. Oh, to be 31, live alone and dance around the house, eu escrevi na minha parede. Aqui, sozinha, eu aprendo finalmente a fazer o que quero na hora que eu quero. Mesmo tendo que ser adulta e equilibrar disciplina, rotina e desejo. Hoje eu consigo e posso priorizar o meu desejo. Coisa que é raríssima entre as mulheres. Desejo é bem precioso, é um elixir do qual homens nunca abrirão mão. É doido e raro ver mulheres que fazem questão do seu desejo. Daquilo que querem. Eu quero um monte de coisa. Eu quero coisas que parecem contraditórias, eu quero desafiar os paradoxos caretas que enfiaram nas nossas cabeças. Eu e meu desejo. Hoje temos um acordo selado, um pacto firmado. Os meus inúmeros desejos ocupam lugar central na minha vida de hoje, em vez de um relacionamento romântico ou a espera passiva e eterna de ser escolhida para um.

Eu ando fissurada nas ideias do desejo. Psicanalítico, sexual, feminino. Desejo de vida. Estou em processo de análise há mais de ano e, em um resumo quase impossível e injusto, eu posso dizer que estou aprendendo a colocar meu desejo em destaque. A priorizar e viver esses desejos, em vez de supervalorizar o que deseja o outro (e o próprio outro). O carnaval foi tempo de exercício prático do desejo. Desejo para mim é por meio do corpo. Carnaval coloca o corpo em ação. Sempre tive uma questão séria com a rua, pânico total. Medo por questões pessoais. Problema de ir até ali na esquina mesmo. Se vou à padaria sozinha hoje, me emociono. Não estou brincando, vivi isolada e dependente por muitos e muitos anos. Hoje, no Carnaval, eu testo o meu andar na rua em capacidades máximas. Ando por Belo Horizonte de bunda de fora, decote gigante, corpo em meu domínio nas ruas que não possuem meu nome, mas que são minhas. Assim como o cabelo, cresceu também a autoconfiança. Meu carnaval se instalou em meu corpo todo dia. As ruas que se acostumem.


TRANSBORDOU UM RIO DO MEU PEITO

Para quem não sabe, eu coordeno atualmente, com o Inácio Saldanha, o grupo de estudos da Rebim (Rede Brasileira de Estudos sobre Bissexualidade e Monodissidência). Em um dos encontros recentes, conversamos sobre bissexualidades masculinas negras a partir do filme do Ricardo Félix Jr., membro da nossa rede. Fiz um pequeno comentário sobre o filme e o deixo aqui.

Em “Transbordou um rio do meu peito”, Ricardo seleciona a sensibilidade como forma fílmica. A metáfora das águas, tão comum pra se dizer de amor e sexualidade, inclusive entre homens, aqui para nós se torna um rio. São águas locais para dizer de um universo tão específico quanto negligenciado. O rio que transborda do peito, transborda nos olhos dos personagens e chega até nós. A bissexualidade, para eles, é um rio inevitável, é “permissão”, é “uma forma de se relacionar com o mundo”. É “saber que vou ter que estar sempre lutando”, pois não se está em terra firme. É no curso das águas desses homens negros e bissexuais que navegamos por uma masculinidade outra, que se nega aos papéis de gênero e raça atribuídos e propõe um fluxo pela sensibilidade e liberdade. É uma masculinidade aparentemente impossível que “coloca a emoção acima da razão”. Os personagens de Ricardo são fortalezas sensíveis, assim como as águas de um rio. Ao final do filme, seus depoimentos desaguam e se concentram no rosto de Ricardo, condensador de todos os outros, e ele nos encara como quem diz que ao navegar nas águas dos outros homens, estamos também navegando dentro do seu próprio barco. Assim como seu olhar fixo, esses homens e suas histórias nos são inescapáveis. Nossa obrigação é o mergulho.


Você pode assistir ao filme aqui:


● Todos esses textos ficarão concentrados e guardadinhos também no meu Substack.


Até a próxima!

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